Quando Raiana Tossulino fundou a marca Psicotrópica, em 2017, não havia nenhuma referência no mercado. Nenhuma marca de moda estampava obras de pacientes psiquiátricos. Nenhum manual ensinava como transformar sentimento em tecido. “Pesquisei e não encontrei nada parecido. Era tudo muito novo. Tive que construir do zero”, lembra. 

Formada em serviço social, Raiana trabalhou nos CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) e ali descobriu uma forma de comunicação que escapava às palavras. “A arte era a linguagem. Os pacientes se expressavam por desenhos, ilustrações. Vi uma potência criativa imensa. Eles existiam no mundo de outro jeito.” 

A seguir, Raiana fala sobre sua trajetória, os desafios de empreender com propósito social e o papel da moda como ferramenta de transformação. 

Esta entrevista foi feita para inspirar você, leitor da FuturePrint Digital, a enxergar novas possibilidades no mercado têxtil, valorizando o empreendedorismo feminino e o olhar fora do óbvio. Boa leitura! 

Como surgiu a ideia de unir moda e saúde mental na criação da Psicotrópica? Foi durante a faculdade de serviço social. Trabalhei nos CAPS e ali percebi que os pacientes psiquiátricos se comunicavam por meio da arte. A linguagem deles era visual, expressiva. Quando entrei na moda, quis trazer essas obras para a estamparia. A Psicotrópica nasceu dessa vivência – e da vontade de contar essas histórias. 

Como funciona o processo de escolha das obras que viram estampas? Já criamos diversas coleções com o projeto Surto Criativo, que nasceu da vontade de fazer curadoria em instituições psiquiátricas. Eu visito esses espaços, observo o que os pacientes estão produzindo e escolho obras que tenham força narrativa – que transformem dor em arte. É um processo intuitivo, mas também ético. A gente busca histórias que ressignificam o sofrimento psíquico e revelam potência criativa. Além disso, há um trabalho de vínculo com o artista, de inclusão econômica. Muitos desses criadores são vistos como inválidos após uma internação, como se não servissem mais para nada. O que fazemos é olhar para a capacidade deles, reconhecer o talento e trazer essas pessoas para o centro da cena.

Quais os principais desafios ao trabalhar com arte produzida por pacientes da rede de saúde mental? O maior desafio é trazer essas histórias para dentro da moda, que ainda carrega um viés excludente e elitista. Falar sobre sofrimento psíquico nesse contexto exige sensibilidade e coragem. É preciso contar essas narrativas com olhar crítico, mas também com poesia — e transformar tudo isso em algo comercialmente viável. Como tornar uma pauta tão importante, dolorosa e complexa parte do universo da moda? A Psicotrópica vem fazendo isso há anos. E seguimos levantando essa bandeira com firmeza.

Como você equilibra estética, respeito à história dos artistas e viabilidade comercial? Essa pergunta me acompanha desde o início. Como costurar histórias tão delicadas, ligadas à saúde mental, dentro de uma lógica comercial? A resposta está na ética e no respeito. Estamos vendendo produtos, sim, mas também lidando com vidas, com histórias reais. O primeiro passo é sempre o vínculo com o artista — uma relação de afeto, como dizia Nise da Silveira: o afeto é revolucionário. A partir disso, tudo é construção. Tijolo por tijolo, vamos entendendo a trajetória de cada artista e moldando uma marca que respeita e valoriza essas narrativas.

Quais foram os maiores desafios ao lançar sua primeira coleção? A primeira coleção da Psicotrópica se chamou Prosperidade e Felicidade em Tudo. Foi feita com obras do Pedro Mota, artista do Museu Bispo do Rosário, no Rio de Janeiro. Ele tinha passado anos internado, vivia com transtorno borderline e carregava uma história de sofrimento psíquico muito intensa. Quando decidi trabalhar com ele, não havia nenhuma referência no mercado. Pesquisei marcas que estampavam obras de pacientes psiquiátricos e não encontrei nada. Era tudo muito novo. Comecei esse trabalho em 2017, quando pouco se falava sobre saúde mental na moda. Posso dizer que a Psicotrópica é pioneira. E ser pioneira significa caminhar sem mapa, buscar um norte onde não há trilha. Foi um processo intuitivo, ético e construído passo a passo.

Que estratégias ajudaram a Psicotrópica a crescer e alcançar o público internacional? Acredito que o que fez a Psicotrópica crescer e alcançar o público internacional foi a autenticidade. Vendemos para Estados Unidos, Europa — enviamos tudo pelos Correios. As estampas são únicas porque têm história, têm conceito. E quando há verdade no que se faz, isso transparece. É difícil não perceber o cuidado. O diferencial está justamente nisso: ser autêntico, ser único.

Como são feitas as parcerias com instituições? Já trabalhamos com várias instituições, psiquiátricas e não psiquiátricas. Nas que atuam com saúde mental, faço a curadoria pessoalmente. Já fui ao Rio de Janeiro, Salvador, São Bernardo do Campo, mapeando artistas e construindo vínculos. As parcerias acontecem de forma orgânica, e acredito que isso se deve à minha formação em serviço social. Saber como entrar nesses espaços, como abordar e respeitar cada contexto, foi essencial para que essas conexões acontecessem de forma ética e sensível.

Pode compartilhar uma história marcante de um artista que participou do projeto Surto Criativo? A história mais marcante é a da Maria Alice, criadora da estampa Festejo, hoje um ícone da Psicotrópica. Conheci ela em 2018, em um estado depressivo profundo. Ela era empregada doméstica, havia tentado suicídio algumas vezes e mal saía da cama. Quase não falava. Um dia, no ateliê de arte, vi que ela pintava bandeirinhas de São João — uma lembrança da infância na Bahia. Aquilo me tocou. Transformamos a pintura em estampa, e com o sucesso, Maria Alice ganhou autonomia financeira, saiu de um relacionamento abusivo, reformou a casa e foi reconhecida como artista pela Câmara dos Deputados de São Bernardo. Hoje, ela é outra pessoa. Ver essa transformação foi revolucionário. 

Maria Alice, criadora da estampa Festejo, da Psicotrópica | Foto: Divulgação

Que conselho você daria para quem está começando um negócio com propósito social? O principal conselho que eu daria é: acredite no seu propósito inicial. É ele que sustenta tudo, especialmente nos momentos difíceis. Empreender no Brasil tem muitos desafios, mas quando você está firme naquilo que acredita, encontra forças para seguir. Quando o propósito está enraizado, quando o foco é claro, isso move montanhas. Você vai com tudo. E, nesse caminho, os obstáculos deixam de ser barreiras e viram parte da construção.

Como você enxerga o papel da moda como ferramenta de transformação social? Sempre acreditei que a moda vai muito além da estética e do consumo. Ela é expressão, comunicação, arte. E, como toda forma de arte, pode – e deve – trazer assuntos importantes para o centro da conversa. Foi por esse caminho que encontrei meu lugar na moda: como ponte para a transformação social. Sem isso, tudo fica vazio – é roupa pela roupa, consumo pelo consumo. Acredito que precisamos acrescentar algo ao mundo. E a moda, quando usada com propósito, tem esse poder.

O que você aprendeu sobre empreendedorismo que gostaria de ter sabido no início? Achei que seria linear. Mas é cheio de altos e baixos. Crises, fornecedores, clientes. São muitos pratinhos para equilibrar. A maior lição foi a resiliência. Se eu soubesse disso no começo, teria sido mais fácil. Aprendi na prática.